quinta-feira, 30 de abril de 2015

12 suposições num terraço

1ª Estudante de Moda
"Ela não queria sujar de sangue os sapatos novos."

Ao se deparar com a bancada, mais alta do que pensara, usou dos saltos para escalar sua própria vontade. A primeira que lhe serviram, toda sua vida aquelas agulhas só a alfinetaram. Os toc toc vinham cantados os tamanquinhos.
Uma vez lá em cima, retirou o par de saltos vermelhos... Bateu-os três vezes... E saltou aos ventos.

2º O físico
"Descalço provaria a liberdade"

Verdade é... Preso em leis, estava fadado e mais do que provado.
Newton já havia resolvido o problema.
Lá em cima, antes de ir, cortou o ar com um dos sapatos. Esperou; escutou o grande assovio; enfim o baque seco.
Calculou o tempo preciso, a massa necessária e as parábolas de sua vida.
O atrito o incomodava.
Algo precisava fazer sentido e morrer com apenas um pé calçado não se enquadrava em "faz sentido".
Nenhuma entropia poderia ser medida, explicada, provada.

3º O bioquímico
"Queria sentir a adrenalina com mais precisão"

Quando sua namorada lhe trouxe o par de sapatinhos de croché, resolveu não deixar bilhetes.
Deixou apenas os sapatos polidos no parapeito.
Você sabe qual é a química por trás de um aborto?

4ºª Economista.
"Capitalismo"

Poupou muito em sua vida.
Retirou os sapatos,
Massageou os pés cansados,
Levantou-se, respirou
Calmamente, aproveitou
Longamente
Aquele ultimo momento.
Como se fosse o último.

5ª A arquiteta
"Queria testar o pé-direito com os próprios pés"

A alpargata estava descolando a sola, coisa mais boba. De todo modo, descalça não corria o risco de terminar a vida com o pé esquerdo.

6º O cientista político
"É uma forma de protesto, deixando os sapatos como mensagem."

De todos os atos políticos que presenciou...
A chuva torrenciava a desgraça de sua existência.
Encharcara-o até a alma.
Os pés tão pesados pelos sapatos ensopados:
Quase ancoraram aquele ser em cima do muro.
Retirara os calçados.
O que ninguém viu reparou é que ele manteve as meias.

7ª A radialista
"Força do hábito"

Ela apresentava um programa tarde da noite, logo depois da faculdade. Era um estágio mal remunerado. Não havia muito entre chegar em casa e os preparativos para dormir, mas ela repetiu todo o processo - como sempre fazia:
Tirava os sapatos,
repetia pra si mesma "Amanhã vai ser outro dia"
e apagava a luz.

8º O teórico
"Estava possuído, galgou descalço seu caminho para o inferno."

O demonio da teoria ainda não habitava o corpo oriental.
Em teoria: não era agradável pensar nos pés inchados pela embolia sanguínea.
Na prática: algumas culturas retiram o sapato para pisar em solo sagrado - em casa por exemplo.

9º O nadador
"Ele quis tomar impulso"

Realmente, acostumado a mergulhar de cabeça -
Posicionou-se com os dedões na borda, pela firmeza do movimento.
Havia inclusive aberto e flexionado as pernas.
Mas estava descalço por outra razão - para sentir o frio do mármore,
Sempre que levantava de sua cama, punha os pisava em uma superfície gelada.
Almejava acordar de um pesadelo.
Ou se equilibrar para o que viria em seguida.

10ª A antropóloga
"Pela liberdade"

Não, lembrava-se claramente de seu pai explicar, claramente
"Negros libertos usavam sapatos"
Porém, como estudiosa da cultura que a envolvia e a precedia... Quis entender o porquê dos outros 9 terem retirado seus sapatos.
Experimentação cultural.
Perpetuar a cultura de seus iguais, mesmo que não a entendesse... Daí, talvez, pudesse surgir algum tipo de orgulho.
Algum tipo de pertencimento.

11º O músico
"Bater as botas não soava bem".

Todo orgasmo era um arrepio.
Com um espasmo estalava os dedos dos pés.
A sinfonia de 'tecs' lhe tomava o corpo.

12º O poeta
"Queria canonizar. Banalizar a morte em poesia: Tirar os pés do chão"

Era mentira... Ele havia tentado uma primeira vez, mas o vento era forte de mais e o fez voltar.
Da segunda vez, pensou na mãe... No casaco que ela havia costurado como presente de natal.
Após retirar o casaco, pensou no som que seu corpo faria durante a queda... Decidiu tirar todas as falsas asas que o cobriam.
Na quarta vez, pensou em algo inapropriado para o momento. Tirou a cueca, o pano que faltava, por conta de uma piada que seu irmão costumava fazer: "Criando o passarinho solto". Que tipo de pessoa citaria Quintana - "Eu passarinho" - projetando uma gaiola?
Restaram apenas os sapatos de toda roupa que vestia.
"O bilhete!!!"
Com a caneta que sempre guardava no bolso da calça foi explicar seus motivos.
O único local plausível eram as solas de suas botas.

O poeta se expõe nu, mas ainda acreditam que ele queira se tornar um cânone na sociedade dos mortos.

1Xº Jones




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